Desafios da Reforma do Código Civil: Uma Perspectiva Feminista

Desde sua promulgação em 2002, o Código Civil Brasileiro tem sido a pedra angular da legislação civil no Brasil, estabelecendo as regras e diretrizes que governam as relações pessoais e patrimoniais entre os cidadãos. Ao longo dos anos, mudanças significativas na sociedade e nas relações sociais têm destacado a necessidade de uma revisão e atualização desta legislação fundamental. Esta necessidade decorre não apenas de avanços tecnológicos e mudanças nas estruturas familiares, mas também de um crescente reconhecimento da necessidade de maior inclusão e representação de diversas vozes e experiências dentro do quadro legal.

Para atender a este imperativo, foi estabelecida uma comissão de juristas, liderada pelo ministro Luis Felipe Salomão do Superior Tribunal de Justiça. Esta comissão tem a missão de revisar e propor atualizações ao Código Civil, visando alinhá-lo com as atuais realidades sociais e jurídicas do país. A comissão, composta por especialistas em diversas áreas do direito, foi encarregada de realizar um exame abrangente das disposições existentes e sugerir modificações que reflitam os valores e necessidades da sociedade brasileira contemporânea. As audiências públicas e as consultas com diversos setores da sociedade foram parte integrante deste processo, visando garantir que a reforma proposta seja inclusiva, equilibrada e representativa das diversas camadas da população brasileira.

Em dezembro de 2023, a comissão responsável pela reforma do Código Civil Brasileiro apresentou o Parecer nº 1, marcando um momento significativo no processo de revisão legislativa. Este documento continha as primeiras propostas de mudanças legislativas sugeridas pela comissão, abrangendo uma gama de temas cruciais que refletem as necessidades e desafios atuais da sociedade brasileira. O Parecer nº 1 é uma peça chave no quebra-cabeça da reforma legal, estabelecendo o tom e a direção para as futuras discussões e alterações no Código Civil.

Minha análise deste parecer, como advogada feminista especializada em Direito de Família e Sucessões, é impulsionada por uma perspectiva crítica. Nas propostas apresentadas, identifico áreas de preocupação significativas, que indicam uma possível falta de consideração pelas questões de gênero e pelos direitos das mulheres. Este ensaio crítico busca, portanto, não apenas apresentar uma visão geral das propostas de reforma, mas também expor e detalhar minhas críticas a cada uma delas. Ao fazê-lo, viso ilustrar como as mudanças propostas podem impactar de maneira desigual e, em alguns casos, prejudicial, especialmente as mulheres e as famílias em situações vulneráveis. A seguir, cada proposta será examinada sob essa luz crítica, destacando a necessidade de uma reforma legislativa mais inclusiva e justa.

DA NECESSIDADE DE PERSPECTIVA DE GÊNERO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL


A reforma do Código Civil Brasileiro, especialmente em relação ao Direito das Famílias, levanta preocupações significativas sob a perspectiva de gênero e no combate à violência contra a mulher. Precisamos urgentemente observar a necessidade de alinhar a legislação nacional com compromissos internacionais, como a Convenção de Belém do Pará e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), é crucial. Estes tratados impõem ao Brasil a obrigação de combater a violência de gênero.

Dados relevantes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP relevam que em 80% dos lares brasileiros onde um homem tentou matar uma mulher com arma branca ou de fogo em 2020, a vítima era mãe, e, frequentemente, os filhos presenciaram as agressões.

Essa tendência é consistente com outros indicadores de violência doméstica. De todas as mulheres que sofreram violência doméstica no ano, 60% eram mães. Estas também representam 74% das vítimas de estrangulamento e tentativa de espancamento, 65% das que sofreram agressões físicas como tapas, socos, empurrões ou chutes, e 65% das que enfrentaram ameaças de agressão física, que também configura violência psicológica.

Diante desses dados, fica evidente que as mães são as principais vítimas de violência doméstica. Portanto, na reforma do Código Civil, especialmente nas partes que tratam de poder familiar, guarda e parentalidade, é imprescindível considerar a realidade da violência doméstica. A coparentalidade não pode ser vista isoladamente das dinâmicas de violência doméstica que permeiam muitos lares. Os artigos que abordam esses temas devem incorporar uma perspectiva de gênero, evitando reafirmar dinâmicas que perpetuem a violência doméstica e garantindo proteção às mães e filhos, vítimas frequentes nessas situações.

Contudo, no contexto da reforma do Código Civil, a parte relacionada à parentalidade ignora a questão da violência doméstica. Este posicionamento se distancia das discussões contemporâneas sobre violência doméstica e formas de utilização da violência, usando os filhos para atingir as genitoras. O conceito de violência vicária, desenvolvido pela psicóloga forense Sônia Vaccaro, destaca a utilização dos filhos pelo pai abusador como meio de perpetuar o controle sobre a ex-parceira. Essa forma de violência, que se manifesta indiretamente através dos filhos, tem como objetivo principal prejudicar a mãe. A violência vicária se enquadra em um contexto onde a mulher é a vítima primária e o dano é infligido através de terceiros. A expressão mais extrema dessa violência é o assassinato de filhos, visando garantir que a mãe nunca se recupere do trauma.

Diante destes dados e conceitos, a reforma do Código Civil necessita de uma avaliação crítica e cuidadosa, especialmente em seus aspectos relacionados à parentalidade, para garantir que as medidas propostas não perpetuem a violência de gênero e protejam efetivamente as mulheres e crianças vítimas de abuso. A legislação precisa ser moldada de forma a refletir as realidades da violência doméstica e as necessidades de proteção das vítimas, alinhando-se aos compromissos internacionais assumidos pelo país no combate à violência contra a mulher.

PONTOS CRÍTICOS DA REFORMA

a) Sobre a Síndrome de Alienação Parental (SAP) na Reforma:

        A reforma do Código Civil parece introduzir artigos relacionados à SAP de maneira sub-reptícia, evitando explicitamente o termo “alienação parental”. Isso se reflete nos artigos 1.583-F e 1.638, inciso IV, onde se infiltra uma ideologia similar à gardeniana. Mesmo com a possível revogação da Lei de Alienação Parental (LAP), a SAP ainda pode ser aplicada nos processos de família com base nestas novas alterações. Essa abordagem é um “cavalo de Troia” e certamente visa barrar o avanço representado pelo Projeto de Lei n° 1372 de 2023. Afinal, mesmo depois de uma possível revogação da LAP, teremos ainda no nosso ordenamento jurídico normas que tratam da teoria pseudocientífica da SAP, só que de forma mascarada. Desta forma, é importantíssimo alertar militância sobre o risco que corremos com esta reforma. 

b) Crítica à Nova Redação do Artigo 1.638, Inciso IV:

        A alteração proposta neste artigo é alarmante. Além da já prevista da inversão da guarda em caso de suposta dificultação da convivência (1.583-F, §2º), a o Parecer nº 1 propõe a perda de autoridade parental por “impedir ou dificultar a convivência do filho com outro genitor”, o que significa que a reforma avança perigosamente na questão da alienação parental. Isso pode levar a situações onde o princípio é mal aplicado, prejudicando principalmente as mulheres em contextos de violência doméstica e manipulação.

c) Da revogação dos avanços propostos pela Lei 14.713/2024

A revogação do §2º do Art. 1584 pela reforma do Código Civil, conforme as alterações introduzidas pela Lei 14.713/2023, representa um sério retrocesso na luta contra a violência doméstica. A Lei 14.713/2023 foi um marco, pois reconhecia a violência doméstica como um fator determinante para a concessão da guarda unilateral, uma salvaguarda crucial para proteger as vítimas deste tipo de violência. Ao não incluir a violência doméstica como uma das circunstâncias que justificam a guarda unilateral no Art. 1.583-E, a reforma ignora uma realidade dolorosa enfrentada por muitas mulheres e crianças.

Esta revogação, que parece estar alinhada com as interpretações de Maria Berenice Dias, que se manifestou contra a Lei 14.713/2023, demonstra uma desconsideração pelas necessidades e segurança das vítimas de violência doméstica. A influência de uma única jurista na revogação de uma norma tão significativa e recentemente sancionada é preocupante, pois sugere uma desproporcionalidade na representação de vozes e interesses no processo de reforma. Ao desconsiderar a violência doméstica como um critério para a guarda unilateral, a reforma do Código Civil falha em proteger adequadamente aquelas que estão em posições vulneráveis, desafiando os avanços conquistados na proteção das mulheres contra a violência.

d) Revogação do atual regra de guarda compartilhada e unilateral

Temos severas críticas a nova redação do artigo 1583 e seguintes, que revoga a redação anterior que disciplinava os regimes de guarda compartilhada e unilateral. A nova proposta torna a convivência compartilhada a regra, com a guarda unilateral sendo uma exceção altamente excepcional. A redação proposta, conforme o art. 1.583-E, limita a aplicação da guarda unilateral a situações de risco para o menor. Isso exclui outras circunstâncias atualmente consideradas para a concessão da guarda unilateral, como casos de violência doméstica (incorporados pela Lei 14.713/2023) ou animosidade acentuada entre os cônjuges, reconhecida pela jurisprudência do STJ. Essa abordagem pode não refletir adequadamente as realidades familiares complexas e as necessidades de proteção de crianças e mães em situações vulneráveis.

e) Questionamentos Sobre a Previsão do Art. 1.583 B:

A previsão de que os filhos têm dupla residência, considerando a casa de casa de cada Genitor, conforme o art. 1.583 B, é arbitraria e inadequada por não considerar a particularidade de cada caso e pela imposição indeterminada dessa regra. Na realidade brasileira, a maioria das crianças e adolescentes reside com a mãe após a separação dos pais. A imposição legal de duas residências certamente não alterará a realidade social concreta e pode criar dificuldades para mães que efetivamente vivem como mães solos com os filhos. É importante destacar que mudanças significativas na participação paterna e no convívio parental dependem de transformações sociais estruturais mais profundas, não apenas de determinações legais.

f) falta de legitimidade democrática no parecer da reforma do Código Civil

Apesar de constar no parecer a afirmação de “todo o trabalho desempenhado fora inspirado pela ideia de que esta reforma não é voltada para uma elite acadêmica, mas, sim, tem como destinatária a própria sociedade brasileira”, a realidade aparenta ser diferente, especialmente no que diz respeito ao envolvimento da sociedade civil.

A realização de poucas audiências públicas e a natureza predominantemente expositiva desses encontros são pontos críticos. Esse formato limita o potencial de diálogo genuíno e participação ativa da sociedade civil, essenciais em um processo que visa alcançar uma reforma legislativa ampla e representativa. A efetiva inclusão de diversos grupos da sociedade civil em debates substantivos é crucial para garantir a legitimidade democrática da reforma.

No texto do parecer, consta a informação genérica e superficial que houve “consultas informais pelos seus membros perante a comunidade jurídica e a sociedade civil” gera dúvidas. Esta afirmação é vaga e levanta questões sobre quem exatamente foi incluído nessas consultas. É preciso que sejam enumerados e citados quais grupos foram consultados e ouvidos. Afinal, é fundamental que grupos com interesses divergentes, como defensores dos direitos dos genitores e aqueles focados nos direitos das mães, sejam igualmente ouvidos. A presença de Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno, doutrinadores vinculados ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), na subcomissão, sugere uma possível inclinação para teses defendidas por essa entidade, como a Síndrome de Alienação Parental (SAP), que é controversa e amplamente criticada por movimentos feministas.

CONCLUSÃO

As críticas detalhadas ao longo deste artigo em relação à reforma do Código Civil Brasileiro revelam uma preocupante tendência de ignorar aspectos cruciais relacionados à dinâmica de gênero e à proteção das mulheres contra a violência. Esta falha não é apenas uma questão de desatenção, mas reflete uma desconexão profunda entre as propostas legislativas e as reais necessidades de uma sociedade que anseia por justiça e igualdade para todos os gêneros. As reformas propostas, ao negligenciarem os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, demonstram uma falta de alinhamento com as diretrizes globais para a igualdade de gênero e a proteção dos direitos das mulheres.

Diante desse cenário, a mobilização e o engajamento ativo, especialmente das mulheres e grupos feministas, emergem como ações indispensáveis. Esta mobilização deve visar não apenas a influenciar as decisões legislativas, mas também a promover uma consciência social mais ampla sobre a importância da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. A participação ativa nesses debates é fundamental para garantir que as leis reflitam as realidades e as necessidades de todas as partes da sociedade, e para evitar a perpetuação de desigualdades e injustiças.

Concluindo, a reforma do Código Civil é uma oportunidade significativa para o Brasil dar um passo adiante na promoção da igualdade de gênero e na proteção dos direitos das mulheres. Como sociedade, devemos nos empenhar para que as mudanças legislativas sejam inclusivas, equitativas e representativas. Como advogada feminista, reitero a importância de uma abordagem crítica e engajada nesse processo, a fim de assegurar um futuro mais justo e igualitário para todas as mulheres no país.