DESMASCARANDO A SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL: PSEUDOCIÊNCIA E MACHISMO NO DIREITO DE FAMÍLIA



Introdução:

A Síndrome da Alienação Parental (SAP), conceito criado pelo psiquiatra Richard Gardner nos anos 80, tem sido um tema controverso no direito de família. Ostensivamente usada para descrever situações onde uma criança é manipulada por um dos pais contra o outro, a SAP tem sido frequentemente aplicada em casos de disputa de guarda. No entanto, sua validade científica e impactos sociais merecem um escrutínio detalhado.

Este conceito, desde a sua concepção, gerou debates acalorados. Gardner propôs a SAP sem base em pesquisas empíricas robustas, o que tem levantado questões sobre sua legitimidade científica. Além disso, a SAP tem sido criticada por sua tendência em reforçar estereótipos de gênero, frequentemente rotulando mães como alienadoras, sem considerar adequadamente o contexto de abuso ou violência doméstica.

A utilização da SAP em tribunais tem consequências profundas. Ao priorizar alegações de alienação, muitas vezes, desconsidera-se relatos de abuso físico ou psicológico, colocando em risco a segurança e o bem-estar das crianças e das mães. Este cenário revela uma falha sistêmica, onde uma teoria não comprovada cientificamente é utilizada para influenciar decisões judiciais críticas.

Portanto, é fundamental examinar as raízes e o uso da SAP sob uma perspectiva crítica. Este artigo visa aprofundar a compreensão sobre como essa pseudociência tem sido usada para perpetuar desigualdades de gênero e prejudicar a proteção das mulheres e crianças em contextos de abuso, questionando a sua presença e influência no sistema jurídico brasileiro.

“Síndrome Da Alienação Parental” – Falsa Ciência A Serviço Do Machismo

O termo “Síndrome da Alienação Parental” foi inicialmente proposto no ano de 1985, pelo controverso psiquiatra americano Richard Gardner, notório por relativizar a pedofilia e o abuso sexual de crianças.  

Na verdade, Gardner (1992, p. 670) considera as atividades sexuais entre adultos e crianças um fenômeno universal que existe em um grau significativo em todas as culturas do mundo. Da mesma forma, “a pedofilia intrafamiliar (isto é, o incesto) é generalizada e … é provavelmente uma tradição antiga” (Gardner, 1991, p. 119). Gardner (1991, p. 118) sugere que a sociedade ocidental é “excessivamente moralista e punitiva” em relação aos pedófilos. Gardner afirma que “as punições draconianas impostas aos pedófilos vão muito além do que considero ser a gravidade do crime”. A atual proibição de sexo entre adultos e crianças é uma “reação exagerada” que Gardner atribui aos judeus[1].

 Para Richard Gardner, a “Síndrome da Alienação Parental” decorreria de uma campanha difamatória perpetrada de forma sistemática e consciente por um dos genitores (via de regra, a mãe), o que representaria uma “lavagem cerebral” na prole, com o intuito de destruição do vínculo afetivo do filho(a) com o seu genitor alienado. Richard Gardner ainda ressalta que, nos casos mais graves, essa campanha compreenderia até mesmo acusações falsas de abuso sexual[2].

Ainda de acordo com a teoria gardneriana, caso exista qualquer indício de rejeição dos filhos em relação ao seu genitor, estaríamos diante de um caso de “Síndrome da Alienação Parental”, não considerando o autor a possibilidade de as crianças em questão terem justificativas reais que expliquem este afastamento, como a ocorrência de abuso físico e sexual por parte do pai. Assim, observamos que o psiquiatra americano tem como postura não responsabilizar o genitor, sempre transferindo para a mãe o encargo pelo sucesso ou não do vínculo paterno com a sua prole. Neste mesmo sentido, merece destaque a consideração de Menezes, na seguinte reflexão sobre o tema:

Para Gardner, se porventura uma mãe recusa o compartilhamento de guarda e a prole rejeita sob algum aspecto a convivência com o pai, Gardner presume ser esta mãe alienadora e quem induz a rejeição do filho, enquanto existem outros fatores que podem dar causa a recusa do filho ao pai, como por exemplo, eventual postura violenta ou abusiva do pai. Nesse contexto, percebe-se que Gardner implica obrigatoriamente a rejeição da criança com uma patologia causada pela mãe, sem pormenorizar as possíveis causas através de um rigoroso diagnóstico[3].

Uma das críticas mais recorrentes à teoria gardneriana é a utilização de discurso com um tom misógino, no qual a mulher sempre é representada como “culpada”, enquanto a figura masculina é poupada de responsabilização, até nos casos mais condenáveis como o abuso sexual infantil:

Reforçando os aspectos misóginos dos fundamentos da SAP, Gardner (1992, p. 575-585[425]) afirmava que as mães que descobriam que seus maridos estavam abusando sexualmente de suas(seus) filhas(os), eram, na verdade, culpadas por tal abuso, pois certamente não satisfaziam sexualmente seu marido. O que o motiva a sugerir as(os) terapeutas que clinicam com as mães de vítimas de incesto a colocar a situação na perspectiva adequada: 1) desestimulando a separação e, na impossibilidade, que procurem resolver seus problemas pacificamente e não através de litígios que somente traumatizam as crianças; e, 2) recordar sempre em suas intervenções que ela (esposa) e a prole são responsáveis pelos atos do pai que se bem entendidos não configuram abuso, mas sim um comportamento histórica e socialmente onipresente em todas as sociedades[4].

Em suas explicações, Gardner apresenta uma representação estereotipada da mulher vingativa, utilizando-se do conceito de “Síndrome da Alienação Parental” como ferramenta protetiva de homens contra mulheres. Ou melhor: de pais contra mães.

Este argumento encontra-se amparado numa lógica machista e patriarcal, enraizada na sociedade na qual estamos todos inseridos, de modo a armar ainda mais os homens contra as mulheres – desta vez, utilizando-se dos artifícios psíquico e institucional.

Outrossim, a referida teoria da “Síndrome da Alienação Parental” não goza de reconhecimento pela comunidade científica, pois não foi fundada na metodologia necessária ou submetida à aprovação entre seus pares.

A despeito de suas “constatações”, escritas a partir de experiências clínicas, sem sistematizações e embasamentos científicos – e, portanto, superficiais – evidencia-se que Gardner constrói “evidências”, através de uma pedagogia médica e jurídica, de que as mulheres no contexto de uma separação e/ou divórcio tornam-se irracionais, histéricas e manipuladoras[5].

Ademais, merece destaque o fato de a teoria da SAP ser rechaçada por muitas instituições respeitadas nacionalmente e internacionalmente, dentre elas: Associação de Psiquiatria Americana (o termo SAP não é aceito em sistemas de classificação atuais, nem consta da Classificação de DSM-IV), Organização Mundial de Saúde (a SAP também não integra a CID-10 – Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde), Associação Psiquiátrica Americana[6], ONU Mulheres, Conselho Nacional de Saúde[7], Comisión Interamericana de Mujeres (OEA)[8] e Conanda[9].

Ocorre que, embora não seja reconhecido pelas supracitadas organizações e pela comunidade científica, o conceito de “Síndrome da Alienação Parental” se alastrou com base, quase exclusiva, no conteúdo proposto por Gardner, de modo que passa a pairar sobre as mulheres a sombra da ameaça de perderem seus filhos pela utilização do discurso oferecido por essa pseudociência. Funciona essa deturpada teoria, portanto, como uma forma de violência psicológica.

Esse artifício, além de absolutamente cruel, é, também, perigoso. Ele inibe que mulheres denunciem os pais de seus filhos, seja por abuso físico, sexual ou violência, com base no medo de que a apuração dessa denúncia se volte contra elas, retirando seus filhos e entregando-os justamente para seus abusadores.

A alegada síndrome vem, há anos, sendo usada como um dispositivo de defesa para homens acusados por estupro de vulnerável ou outras formas de violência. Neste sentido, merece destaque a pesquisa realizada pelas estudiosas Sheila Stolz e Sibele de Lima Lemos[10], as quais analisaram 118 decisões de segundo grau do estado do Rio Grande do Sul, proferidas entre os anos de 2019 e 2020 e que versavam sobre acusações de alienação parental. As pesquisadoras apuraram que, aproximadamente, 22,9% das decisões analisadas abordavam a alegação de alienação parental como tese de defesa para acusação de abuso sexual:

Em relação às denúncias de abuso sexual contra genitores estas apareceram em número expressivo, pois, em 2019, constam em 18 decisões e, em 2020, em 9 decisões. Dentre estas decisões processuais, 11 delas, datadas de 2019, e 7 do ano de 2020, apresentaram laudos e provas de abusos sexuais. Mesmo assim, encontramos 4 processos de inversão de guarda para o genitor acusado de abuso sexual, ou seja, duas por ano (2019 e 2020)[11].

De semelhante modo, Ferreira e Enzweiler argumentam:

The National Organization for Women Foundation denuncia que as acusações de transtorno de alienação parental feitas por pais (ex-maridos) abusadores se dá com o claro propósito de que os Tribunais desconsiderem a denúncia materna de abuso sexual ou físico praticado contra a criança e, com isso, buscam “negociar” pensão alimentícia e guarda compartilhada dos filhos[12].

Neste sentido, a aplicação prática do conteúdo de Gardner, ao invés de “proteger as crianças”, conforme alegado, acaba por colocá-las em situação de perigo e vulnerabilidade.

Caplan, para a revista Psychology Today, nos ilumina acerca do tema:

Quando aplicado a um dos pais em um caso envolvendo uma alegação de abuso sexual infantil, quase sempre é aplicado a uma mulher cujo filho supostamente está sendo molestado pelo pai. Apesar de ainda não estar no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a SAP provou em alguns tribunais ser um veículo surpreendentemente eficaz para desviar o foco do agressor e simplesmente alegar que a mulher deve estar mentindo, e treinando seus filhos a mentir, porque ela tem a suposta doença mental de SAP. A alegação é que, sem justa causa, ela quer colocar os filhos contra o pai (tradução livre)[13].

É grave que o aparelho jurisdicional (que tem por finalidade promover a proteção aos direitos como um todo) seja deturpado a ponto de funcionar como ameaça. Como será a seguir explanado, a teoria de Gardner da “Síndrome da Alienação Parental” foi utilizada como fundamento para a proposição do Projeto de Lei nº 4.053/2008, que fora apresentado sob o argumento de proteção de crianças e adolescentes, quando, na prática, observamos que sua consequência concreta é sujeição das mães à prática de violência psicológica e institucional.

Conclusão:

A prevalência da Síndrome da Alienação Parental (SAP) nos tribunais, apesar de sua falta de embasamento científico, levanta sérias preocupações. Esta teoria, que muitas vezes protege abusadores ao invés de vítimas, promove uma narrativa que coloca as mulheres em uma posição de desvantagem, especialmente em casos de disputa de guarda. A perpetuação dessa narrativa não só é prejudicial para as mães, mas também para as crianças, que podem ser injustamente afastadas de um ambiente seguro e amoroso.

Além disso, a SAP contribui para a perpetuação de estereótipos de gênero, reforçando a ideia da mulher como alienadora por padrão, o que é uma grave injustiça. Este cenário demonstra a necessidade urgente de uma revisão crítica e fundamentada nas práticas jurídicas. É crucial que o sistema jurídico reconheça as falhas intrínsecas à SAP e priorize o bem-estar e a segurança das vítimas de abuso.

Neste contexto, torna-se evidente a necessidade de revogação da Lei de Alienação Parental (LAP), que se baseia na teoria da SAP. A existência desta lei, fundamentada em uma premissa não científica, compromete a justiça e a equidade no direito de família. Sua revogação seria um passo significativo na proteção das vítimas de abuso e na luta contra a discriminação de gênero no sistema jurídico.

Portanto, é imperativo que a comunidade jurídica e a sociedade em geral se mobilizem pela revogação da LAP. Este esforço não só representa um avanço na luta contra o machismo institucionalizado, mas também é um passo fundamental para garantir um sistema de justiça familiar mais justo, equitativo e verdadeiramente focado no bem-estar das crianças e na proteção das vítimas de abuso.


[1] STOLZ, Sheila; LEMOS, Sibele de Lima. Discursos Judiciais de Aplicação da Lei de Alienação Parental: A Sindêmica Violência Simbólica e Real de Gênero em tempos de Corona Virus Disease. In: MELO, Ezilda (org.). Maternidade no Direito Brasileiro: Padecer no Machismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

[2] BATALHA, Glaucia Fernanda Oliveira Martins; SERRA, Maiane Cibele de Mesquista. Produções discursivas de gênero: uma reflexão crítica sobre a Lei 12.318/2010 e a ““Síndrome da Alienação Parental””. Revista de Direito da Família e Sucessão, Belém, v. 5, n. 2, p. 19-37, jul./dez. 2019. [online]. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/view/5912. Acesso em: 20 jun. 2022.

[3] MENEZES, Rachel Serodio de. O outro lado da lei de alienação parental: a violência contra mulheres e crianças legitimadas pelo sistema de justiça. Latinidade: Revista do Núcleo de Estudos das Américas, v. 12, n. 2, p. 147-169, jul./dez. 2020. [online]. Disponível em: https://summumiuris.com.br/o-outro-lado-da-lei-de-alienacao-parental/. Acesso em: 17 jun. 2022.

[4] STOLZ, Sheila; LEMOS, Sibele de Lima. Discursos Judiciais de Aplicação da Lei de Alienação Parental: A Sindêmica Violência Simbólica e Real de Gênero em tempos de Corona Virus Disease. In: MELO, Ezilda (org.). Maternidade no Direito Brasileiro: Padecer no Machismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

[5] BATALHA, Glaucia Fernanda Oliveira Martins; SERRA, Maiane Cibele de Mesquista. Produções discursivas de gênero: uma reflexão crítica sobre a Lei 12.318/2010 e a ““Síndrome da Alienação Parental””. Revista de Direito da Família e Sucessão, Belém, v. 5, n. 2, p. 19-37, jul./dez. 2019. p. 25. [online]. Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/view/5912. Acesso em: 20 jun. 2022.

[6] SOTTOMAYOR, Maria Clara. Uma análise crítica da “Síndrome da Alienação Parental” e os riscos da sua utilização dos Tribunais de Família. Julgar, n. 13, p. 73-107, 2011. p. 78.

[7] CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS). Recomendação nº 003, de 11 de fevereiro de 2022. Recomenda a rejeição ao PL nº 7.352/2017, bem como a adoção de medidas de proibição do uso de termos sem reconhecimento científico, como “Síndrome da Alienação Parental”, entre outros. 2022.

[online]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/images/Resolucoes/2022/Reco003.pdf. Acesso em: 20 jun. 2022.

[8] ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) COMISIÓN INTERAMERICANA DE MUJERES (CIM). Comité de Expertas del Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI). 2014.

[9] CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (Conanda). Nota Pública do Conanda sobre a Lei de Alienação Parental. Brasília, 30 ago. 2018. [online]. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/blob/baixar/10131. Acesso em: 10 jun. 2022.

[10] STOLZ, Sheila; LEMOS, Sibele de Lima. Discursos Judiciais de Aplicação da Lei de Alienação Parental: A Sindêmica Violência Simbólica e Real de Gênero em tempos de Corona Virus Disease. In: MELO, Ezilda (org.). Maternidade no Direito Brasileiro: Padecer no Machismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

[11] Ibidem, loc. cit.

[12] FERREIRA, Cláudia Galiberne; ENZWEILER, Romano José. “Síndrome da Alienação Parental”, uma iníqua falácia. Revista da ESMESC, v. 21, n. 27, p. 81-126, 2014. [online]. Disponível em https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/97. Acesso em: 20 jun. 2022.

[13] CAPLAN, Paula J. “Parental Alienation Syndrome:” Another Alarming DSM-5 Proposal. Psychology Today. 07 jun. 2011. [online]. Disponível em https://www.psychologytoday.com/us/blog/science-isnt-golden/201106/parental-alienation-syndrome-another-alarming-dsm-5-proposal?page=1. Acesso em: 20 jun. 2022.